quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

 De graça
 
Manhã de domingo, pouco movimento na rua. Parada próxima ao prédio onde moro, aguardava o táxi que havia solicitado. Enquanto esperava, divertia os olhos com a observação de detalhes que passam despercebidos na correria do dia-a-dia. A pressa diminui a nossa capacidade de percepção e, com o tempo, nem isso a gente nota. Em geral, fachadas, muros, portões, coisas que eu olhava naquele momento, não fazem diferença alguma para nós. O embaraço é que, muitas vezes, acostumados a olhar de forma tão superficial, estendemos essa desatenção para aquelas que realmente fazem.
Mas o fato é que eu continuava lá, ainda um pouco sonolenta, esperando o tal táxi. Num determinado momento, reparei uma senhora caminhar na minha direção. Oitenta anos presumíveis, cabelos brancos, baixa, usava óculos, tinha o andar tranquilo. Carregava uma bolsa que, pelo volume, sugeria que também iria fazer um passeio mais demorado naquele domingo. Ao passar por mim, ela me olhou rapidamente e baixou os olhos, em seguida. Foi naquele instante que a cumprimentei com um caloroso “bom dia”. Ela me olhou de novo, desta vez com aparente surpresa, e retribuiu o gesto com alguma timidez. Caminhou cerca de três metros e voltou.
Parou diante de mim, o olhar ainda surpreso. Eu, curiosa por saber o motivo pelo qual havia retornado. “Voltei para dizer que isso que você fez é muito raro, quase ninguém se cumprimenta mais”. Sorri. Não pude deixar de lhe dar razão, principalmente se tratando de pessoas desconhecidas. Trocamos alguns comentários a respeito, depois retomou o seu caminho, talvez ainda pensando no que havia acontecido.
Eu, pelo menos, fiquei pensando no que aconteceu. Estranho tempo esse nosso em que um gesto de cordialidade é capaz de nos espantar de forma tão visível. Parece que nos acostumamos de tal forma com a deselegância que ficamos desconcertados com a gentileza. Muitas vezes chegamos até a desconfiar da existência de algum interesse ainda oculto. Como numa guerra, a maioria de nós, vive a postos, grande parte do tempo, para se defender de possíveis ataques, o coração quase nunca receptivo para simplesmente receber carinho.
Acredito que a natureza humana é essencialmente amorosa e que quando não demonstramos isso é porque há nuvens muito espessas escondendo o nosso sol. Nuvens de medo, dor, raiva, confusão. Mas o sol está lá, preservado, o tempo todo. Em algumas pessoas, mais do que em outras, parece que as nuvens demoram muito tempo a se dissipar, é verdade. Às vezes, podem até não dissipar durante uma vida inteira, é verdade também. Mas, à medida em que começamos a abrir o nosso coração, é inevitável não sentir que ser amáveis e cuidadosos uns com os outros não é um favor, uma concessão. Inevitável não sentir que o gostinho bom de dar amor é tão saboroso quanto o de recebê-lo.
Aquela não foi uma exceção. De vez em quando, eu cumprimento, sim, pessoas desconhecidas. Ofereço sorrisos, olhares generosos, pequenas delicadezas. Há quem pareça se assustar e sequer retribua, o coração contraído demais para a gratuidade do gesto. Tem vez também em que oferto uma outra espécie de presente, que quem recebe jamais saberá que eu dei. Pode ser para alguém que eu sinta estar triste ou para alguém que eu perceba estar muito feliz, não importa. Não há lógica nem regra a ser seguida. Sem fazer ruído, a minha vida dirige para aquela pessoa a intenção de que a vida dela seja abençoada. Simples assim. Olhar alguém com amor, de perto ou de longe, é um jeito instantâneo de prece, eu acho.
Entrei no táxi. Olhando para a paisagem, eu lembrava da perplexidade daquela senhora e pensava que há de chegar um tempo em que a delicadeza não nos surpreenda mais, como tem acontecido. Um tempo em que ela faça parte de um comportamento amoroso naturalmente compartilhado entre os seres humanos. Um tempo em que, mais do que entender, as pessoas sintam que realmente estamos todos em família na humanidade e que a paz que dizemos querer precisa começar no coração da gente. Na maneira atenta e generosa com que cuidamos de nós mesmos. Nos gestos delicados que estendemos aos outros. De graça.
 
Ana Jácomo

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